A perspectiva para a indústria de bens de luxo durante e depois do coronavírus

Reprodução MC Kinsey & Company
Por Antonio Achille e Daniel Zipser 

Em meio à pandemia de coronavírus, a primeira prioridade de toda empresa é, obviamente, proteger a saúde e a segurança de funcionários, consumidores e parceiros de negócios. De fato, as empresas de luxo se voltaram para atender às necessidades urgentes de saúde pública: fábricas que produziam lenços e perfumes agora fabricam máscaras faciais e álcool gel, e muitos grupos de luxo fizeram doações em dinheiro para hospitais e outras organizações sem fins lucrativos. Ao mesmo tempo, com milhões de pessoas dependendo da indústria de bens de luxo para se sustentar – de operários e funcionários de lojas de varejo a artesãos de pequenas cidades – os líderes da indústria estão se planejando com antecedência e debatendo-se com questões estratégicas de longo prazo para garantir a sobrevivência de seus negócios. 

Neste artigo, discutimos o impacto da crise no setor de bens de luxo. Em seguida, recomendamos dois conjuntos de prioridades para os executivos do setor: ações de curto prazo para “navegar o agora” e considerações de longo prazo para moldar o futuro.

Um reinicialização total ou um desvio inesperado e temporário de curto prazo?

Embora seja muito cedo para quantificar o custo financeiro total do COVID-19 no setor, a pandemia certamente abalou alguns dos aspectos fundamentais da indústria do luxo – e algumas dessas mudanças podem ser permanentes.

Darwinismo por atacado. Mesmo antes da pandemia, os atacadistas independentes de artigos de luxo na Europa (muitos dos quais são pequenas butiques de propriedade familiar) e algumas das grandes lojas de departamentos de luxo da América do Norte já estavam com dificuldades – em parte por causa das marcas de luxo que mudaram para a integração vertical nos últimos 20 anos e, mais recentemente, o crescimento do e-commerce. Essa pandemia pode forçar alguns deles a falir. O dano pode se estender para marcas que ainda não fizeram a transição completa para um modelo de distribuição verticalmente integrado, bem como para marcas novas que precisam de canais de atacado para alcançar novos clientes e financiar o desenvolvimento de suas coleções completamente. Para sobreviver, os atacadistas provavelmente adotarão políticas comerciais e de desconto agressivas – que, pelo menos a médio prazo, podem prejudicar o posicionamento de luxo de marcas que não possuem modelo de concessão. 

De viajante global a comprador local. O mercado de luxo seduz um consumidor global: de 20 a 30% das receitas do setor são geradas pelos consumidores que fazem compras de luxo fora de seus países de origem. Em 2018, os consumidores chineses fizeram mais de 150 milhões de viagens ao exterior; estimamos que as compras fora do continente representaram mais da metade dos gastos de luxo da China naquele ano. Os compradores asiáticos consomem produtos de luxo fora de seus países de origem não apenas para se beneficiar dos preços mais baixos na Europa, mas também porque as compras se tornaram parte integrante do experiência de viagem: comprar uma marca em seu país de origem traz um senso de autenticidade e entusiasmo. Com as recentes restrições de viagens, esse importante fator para os gastos de produtos de luxo foi interrompido e prevemos apenas um aumento gradual nas viagens internacionais, mesmo depois que as restrições acabarem. Dito isto, os consumidores chineses continuam sendo a maior oportunidade de crescimento para o setor de luxo. As marcas, claramente, precisarão de uma nova abordagem para atrair compradores de produtos de luxo. Para reativar os consumidores de luxo asiáticos em seus países de origem, as marcas podem se concentrar na criação de experiências locais personalizadas, no fortalecimento de suas ofertas digitais e de marketing omnichannel, e no engajamento mais profundo com os consumidores nas cidades de classificação Nível -2, Nível -3 (tier-two e tier-three)*. Este último tópico será desafiador, dadas as limitações da infraestrutura de varejo e dos recursos de atendimento ao cliente nessas cidades.

Shows sem audiências ao vivo. As semanas de moda e as feiras comerciais têm sido formas essenciais pelas quais as marcas mantêm um relacionamento próximo com os consumidores e parceiros comerciais. Embora esperemos algum retorno à normalidade nessa frente, também acreditamos que a indústria do luxo – em estreita colaboração com organizadores da semana de moda e associações comerciais – deve explorar maneiras alternativas de oferecer o mesmo tipo de mágica que esses eventos oferecem quando existem restrições em viagens internacionais e grandes encontros. Os players do setor também devem considerar a necessidade de uma reformulação coordenada do calendário de moda, com as marcas simplificando e agilizando seus calendários de apresentação.

Da propriedade à experiência, e vice-versa. O “luxo experimental” – pense em hotéis 5 estrelas, resorts, cruzeiros e restaurantes com muitas estrelas do Michelin – tem sido um dos componentes mais dinâmicos e de crescimento rápido do setor de luxo. A geração Millennials (nascidos entre 1980 e 1995) optou mais por experiências e “momentos instagramáveis” em vez de itens de luxo. Os Baby Boomers (nascidos entre 1946 e 1964) também estavam seguindo a mesma direção, já tendo acumulado produtos de luxo ao longo dos anos. Embora esperemos que o momento positivo do luxo experimental persista, ele diminuirá a curto prazo, à medida que os consumidores voltarem temporariamente a comprar bens em vez de experiências.

Hiperpolarização no desempenho. Mesmo antes da crise, fazia pouco sentido falar sobre o setor em termos de médias, porque as taxas de crescimento e as margens de lucro estavam muito amplamente espalhadas. Mesmo no mesmo segmento e preço, o crescimento das marcas de luxo variam de 40%  a porcentagens negativas, e o lucro de 50%  a porcentagens de um dígito. Esperamos uma maior polarização com base em três fundamentos: a saúde do balanço comercial de uma marca antes da crise, a resiliência de seu modelo operacional (incluindo sua capacidade digital, a agilidade de sua cadeia de suprimentos e a dependência de canais atacadistas) e sua resposta ao COVID-19.

Outra chance para ‘gemas raras’. Na última década, conglomerados de luxo europeus, empresas de capital privado e, mais recentemente, grupos de moda dos EUA e investidores do Oriente Médio adotaram energeticamente metas de aquisição de marcas atraentes. Como resultado da crise atual, alguns desses compradores – principalmente aqueles que não são empresas de luxo – podem descobrir que não têm as competências essenciais nem a paciência para nutrir essas marcas de alto potencial e, portanto, podem querer colocá-las de volta no mercado. Aquisições que eram proibidamente caras podem se tornar viáveis no período pós-crise. Tais desenvolvimentos podem resultar em maior consolidação da indústria ou até a formação de novos conglomerados de luxo.

Repetidas vezes, a indústria do luxo se mostrou capaz de se reinventar. Estamos confiantes no potencial de longo prazo do setor. Mas algumas marcas emergirão da crise mais fortes, enquanto outras terão dificuldade em preservar a integridade de seus negócios. Tudo dependerá de sua capacidade de responder às urgências de curto prazo relacionadas ao COVID-19 enquanto simultaneamente planejam e executam novas estratégias para o futuro.

“Navegando o agora”: as prioridades imediatas

Muitos executivos de luxo demonstraram liderança atenciosa durante esta crise. Eles estão priorizando a segurança dos funcionários e clientes e se comunicando proativamente com todas as partes interessadas sobre seus novos protocolos de saúde e segurança, atividades de resposta à crise e as etapas que estão tomando para manter as operações em execução. Ao mesmo tempo, eles devem tomar medidas rápidas para garantir que seus negócios enfrentem a crise. Aqui estão as ações de curto prazo que os líderes da empresa devem considerar tomar.

Analise o estoque 2020 e repense as coleções 2021. As vendas para a primavera deste ano estão 70% inferiores às do ano passado – não surpreende, considerando que os consumidores tiveram pouca oportunidade de explorar as coleções de primavera e verão nas lojas. Decida como introduzir- por etapas- as coleções de outono e inverno de 2020 e desenvolva um plano para lidar com níveis sem precedentes de estoque não vendidos de 2020 – sem recorrer a descontos exorbitantes, que comprometem o valor da marca. Mantenha-se informado sobre os planos de atacadistas e varejistas de e-commerce para eliminar o estoque extra. Em alguns casos, as trocas de estoque podem ser preferíveis à promoções e descontos agressivos. Uma maneira de usar o estoque extra poderia ser recompensar os consumidores fiéis com presentes ou outros tipos de brindes para surpreendê-los e encantá-los, além de estimular o apetite de fazer compras das coleções ou das outras categorias.

Eleve o envolvimento digital. Como as lojas permanecem fechadas em muitas partes do mundo, o e-commerce é um canal crucial para manter as vendas em alta, se comunicar com os consumidores e criar um senso de comunidade em torno de uma marca. Acelere seus investimentos digitais e mude os gastos com mídia para canais on-line, com foco na ativação do cliente e não na construção da marca. Além de aprimorar seus próprios sites, considere também parcerias com revendedores de e-commerce de boa reputação. O marketing digital pode ajudar não apenas a aumentar as vendas on-line, mas também atrair os consumidores a visitar as lojas assim que reabrirem.

Gerencie a saúde financeira. Configure uma equipe de controle de caixa, com representação das equipes de compras e vendas, para examinar os gastos e identificar reduções responsáveis na saída de caixa. Revise os contratos de locação e todas as despesas operacionais, incluindo gastos com marketing e eventos. Ao mesmo tempo, prepare-se para apoiar seletivamente atacadistas e lojas de departamento, estendendo os termos de contas a receber e organizando trocas de estoque. Trabalhe em estreita colaboração com as autoridades do governo, de país a país, para encontrar maneiras de aliviar a tensão de caixa com medidas públicas.

Faça o planejamento da demanda- do zero. Revise seu orçamento e planos de inventário para 2020, avaliando o impacto do COVID-19 em cada região e unidade de negócios. Ajuste as previsões de receita e lucro e crie incentivos para os líderes das unidades de negócios definirem novas metas. Resista à tentação de impulsionar as vendas à custa das margens, pois uma abordagem focada nas vendas provavelmente produzirá projeções de demanda imprecisas e, consequentemente, grandes quantidades de estoque não vendido.

Avalie a força da sua cadeia de suprimentos. Mais de 40% da produção global de bens de luxo acontece na Itália – e todas as fábricas italianas, incluindo pequenas façonniers familiares (um termo francês que se traduz vagamente em fabricantes contratados, oficinas), foram temporariamente fechadas. As empresas de luxo devem avaliar, categoria por categoria e produto por produto, onde é provável que o impacto seja sentido de maneira mais aguda. As possíveis ações de curto prazo incluem a movimentação de inventário por regiões e canais, privilegiando os mercados geográficos menos afetados e certificando-se de atender aos pedidos on-line. A médio prazo, as empresas de luxo devem ajudar os parceiros de produção a se recuperar, efetuando pagamentos rápidos e restaurando a produção o mais rápido possível. Se as façonniers italianas não sobreviverem, um elemento característico do ecossistema de luxo – o artesanato resultante da excelência e habilidade transmitidas por gerações e a fonte da aura “Made in Italy” – podem ser perdidos para sempre.

Ajuste os planos de merchandising. À medida que as rotinas sociais dos consumidores se adaptam a lockdowns e restrições de distanciamento físico, começamos a ver mudanças no comportamento de compra. Por exemplo, alguns players de luxo relatam que, em termos de preço, itens de luxo high-end e low-end (os mais caros e os mais baratos) estão se mostrando mais resistentes do que aqueles no meio da faixa, talvez devido a uma combinação de “revenge spending” (uma frase que se refere à demanda reprimida por itens de luxo durante ou após crises) e ao desejo de maximizar o valor do dinheiro comprando itens funcionais. Eles também estão vendo bolsas e pequenos artigos de couro vendendo melhor do que o ready-to-wear durante a crise. O mercado de roupas infantis parece estar indo particularmente bem. Millennials não reduziram seus gastos tanto quanto os outros segmentos adultos. Estas são as observações de alguns players de luxo, mas claramente não existe um plano de merchandising único. As marcas devem analisar cuidadosamente os dados de vendas e incorporar as percepções dos consumidores em seus planos de merchandising.

Moldar o próximo normal: considerações de longo prazo

A estabilização dos negócios durante a crise é crucial – mas a administração não deve perder de vista o longo prazo. Aqui estão as ações estratégicas a serem consideradas durante a recuperação.

Coloque o digital no centro do seu modelo operacional. Para muitas empresas, essa crise tem sido um catalisador para o desenvolvimento e a execução de uma estratégia on-line e omnichannel. Na China, o comércio eletrônico atraiu novos segmentos e mercados de clientes; podemos esperar um padrão semelhante em outros lugares. Comece alocando uma parcela maior de investimento no canal online. Explore novas formas de parceria com varejistas de e-commerce estabelecidos. Intensifique seus esforços de personalização em marketing digital. Os consumidores de luxo estão acostumados a um alto padrão de serviço nas lojas; a ênfase, portanto, deve ser a criação de uma experiência digital personalizada da mesma qualidade.

Crie habilidades relacionadas à resiliência e transformação. Nos últimos 30 anos, o setor de luxo criou valor agregado, graças à sua criatividade e inovação. Além de apoiar as habilidades essenciais, como design, marketing e merchandising, as empresas de luxo agora precisam desenvolver o talento gerencial para apoiar o CEO em resiliência e transformação. Uma possibilidade é criar um novo cargo de diretoria, o diretor de transformação, para enfatizar a importância dessas competências.

Reformule com ousadia o ecossistema, inclusive por meio de M&A (mergers and acquisitions- fusões e aquisições). As crises podem criar novos caminhos para o crescimento. As empresas devem se questionar com algumas perguntas: “Existem empresas com as quais poderíamos fazer parceria, tanto para mantê-las nos negócios quanto para nos permitir expandir para mercados ou categorias de produtos adjacentes? Existem mudanças ao longo da cadeia de valor (como a integração vertical) que se tornaram mais atraentes? Que parcerias ou aquisições que eram menos viáveis antes – talvez na área tecnológica – poderíamos buscar agora? Quais marcas podemos adquirir para complementar nosso portfólio ou iniciar nossa jornada para nos tornarmos um grupo de luxo maior? ” À medida que as empresas buscam formar parcerias ou fazer aquisições, será importante considerar não apenas as razões econômicas, mas também as sociais: por exemplo, um acordo de M&A poderia ajudar um fornecedor em perigo, salvar empregos em uma comunidade em dificuldades ou fortalecer o setor do luxo a longo prazo?

Antecipe mudanças nos sentimentos e no comportamento do consumidor. Os consumidores são os principais acionistas do setor de luxo. Esperamos que, uma vez que as condições permitam, os consumidores desejem retomar suas vidas normais. No entanto, o próximo normal pode parecer bem diferente; as empresas de luxo devem tentar antecipar e responder a qualquer que seja o próximo normal. Por exemplo, em nossas recentes conversas com CEOs, uma tendência que provavelmente se intensificará após a crise é a tendência à sustentabilidade e o desejo de um consumo mais responsável – reforçando a necessidade das empresas fornecerem informações claras e detalhadas sobre seus processos e produtos. A experiência também sugere que, após uma crise de larga escala com um forte impacto emocional, as preferências do consumidor podem mudar, pelo menos por um período de tempo, em direção ao “luxo silencioso” – prestando mais atenção aos elementos clássicos, como artesanato e legado, e menos em fama e brilho.

Digitalize a cadeia de suprimentos de ponta a ponta. A tecnologia – de plataformas de trabalho remoto a showrooms virtuais – pode ajudar empresas de luxo a manter a produtividade durante a crise e, talvez, até melhorar a produtividade para sempre. Além disso, os elementos comerciais (como showrooms virtuais e prototipagem e amostragem digitais) serão valiosos para manter fortes relacionamentos com os compradores, mesmo durante os períodos em que as restrições de viagem estejam em vigor. A digitalização da cadeia de suprimentos de ponta a ponta exigirá, é claro, investimento em tecnologias inovadoras e de ponta.

Embora a pandemia do COVID-19 tenha sido um desafio para 2020, estamos confiantes de que, com um planejamento cuidadoso e execução hábil, o setor de bens de luxo pode enfrentar com sucesso a crise e emergir ainda mais forte. As ações descritas aqui podem ajudar você e os outros líderes de sua organização a enfrentar os desafios de hoje, enquanto constroem e fortalecem seus negócios a longo prazo.

(*): O sistema de importância de cidades chinesas é uma classificação hierárquica delas. Não existem listas oficiais na China, pois o governo chinês não publica ou reconhece uma definição oficial ou uma lista de cidades incluídas no sistema de níveis.

A classificação de cidades da China -Nível -1, novo Nível -1, Nível -2, Nível -3 ( tier-1, new tier-1, tier-2, tier-3) é popularmente usada pelas empresas para orientar sua estratégia de entrada no mercado. Tradicionalmente, as cidades de Nível 1 são as maiores e mais ricas – geralmente consideradas as megalópoles da China. À medida que os níveis progridem, as cidades diminuem de tamanho, riqueza e se afastam dos locais principais.

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